Por norma seria a última pessoa no Mundo a comentar um assunto destes, tão pequenino e tão mesquinho. Mas desta vez isto mexeu com alguma coisa cá dentro e não consigo ficar calada. Mesmo assim, escrevo aqui e não no Facebook, que não sou rapariga de gostar muito de mandar postas de pescada.
No ano em que entrei em Medicina as médias subiram. Não foi muito, mas toda a gente sabe que a subida de uma décima neste curso equivale a deixar cem pessoas de fora. Eu entrei à primeira, ainda por cima na universidade que tinha escolhido. Tinha média para isso, mas não foi por sorte, nem por pedir muito a Deus. Trabalhei que me fartei, abdiquei de muita coisa, dei o que tinha e o que não tinha porque sabia que uma centésima faria a diferença. E para quem, como eu, não se via a fazer outra coisa da vida que não ser médica, não entrar não podia ser opção. E consegui, demorei uma semana a cair em mim, mas quando caí não me lembro de alguma vez ter estado tão eufórica. Foi o concretizar de um sonho, o colmatar de três anos de sacrifício.
No entanto, tive uma amiga que não conseguiu. Medicina também era o sonho dela, ela também se matou a estudar para o atingir, e no fim não conseguiu. E é aqui que esta história da Maria me começa a fazer comichão. Essa minha colega ficou de fora no primeiro ano de candidatura. E o que é que ela fez? Escreveu uma carta a queixar-se ao Presidente da República. Entrou na sua 6ª opção, Farmácia, e fez o ano todo, todas as cadeiras. Em Junho foi repetir os exames nacionais. Subiu a nota e nesse ano entrou nos Açores (Açores é Portugal, Maria, e também há lá uma escolazita qualquer que ensina pessoas a serem médicas). Em Setembro fui despedir-me dela ao aeroporto. Pensei que a ia ver triste por deixar a família (e não é que por acaso ela também tinha um irmão? Só que não tinha que o ir levar ao ténis), mas não, juro que nunca a tinha visto tão feliz. Nesse ano nunca veio a casa e os pais nunca a foram visitar. Não havia dinheiro. Mas ela nunca desistiu. Chama-se força de vontade, e sempre a admirei por isso. No ano a seguir fez uma terceira tentativa. Teve a sorte de nesse ano as notas terem descido e entrou em Lisboa. Teve equivalências e agora está no terceiro ano, na Universidade Nova de Lisboa, a estudar Medicina. Continua a não vir a casa todos os meses, porque continua a não haver dinheiro para isso. Mas ela está feliz. E acredito que para ela o curso tenha mais valor do que até para mim, tendo em conta o quanto teve que lutar por ele. E são pessoas como ela, que eu sei que existem às centenas, que fazem com que as Marias deste Mundo me dêem vómitos. Perdoem-me a expressão, mas dão mesmo. Menos arrogância, menos facilitismo, menos mimo. Mais espírito de sacrifício, mais entrega, mais dedicação. Porque ela tem razão numa coisa: não são só as notas que fazem um bom médico, o lado humano também conta. Mas médicos que acham que Portugal é Lisboa, médicos que não podem trabalhar aos Sábados porque têm que levar os irmãos ao ténis, médicos que acham que têm direito a este Mundo e ao outro só porque querem ou sonharam muito com isso, também não são bons médicos. E acima de tudo, pessoas que resolvem qualquer adversidade com choradinhos e ameaças veladas do tipo ''Se não me arranjam lugar aqui vou lá para fora e vocês é que ficam a perder'' também não são boas pessoas.
É que ainda que fosse verdade que o país precisa de médicos, acredito que passamos melhor sem médicos assim.